só e imóvel a velar, encardido pelo sol e pelo tempo, testemunho de prantos, lamentações e orações.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

acorrentados

Quem coleciona selos para o filho do amigo;
quem acorda de madrugada e estremece no desgosto de si mesmo ao lembrar que há muitos anos feriu a quem amava;
quem chora no cinema ao ver o reencontro de pai e filho;
quem segura sem temor uma lagartixa e lhe faz com os dedos uma carícia;
quem se detém no caminho para ver melhor a flor silvestre;
quem se ri das próprias rugas;
quem decide aplicar-se ao estudo de uma língua morta depois de um fracasso sentimental;
quem procura na cidade os traços da cidade que passou;
quem se deixa tocar pelo símbolo da porta fechada;
quem costura roupa para os lázaros;
quem envia bonecas às filhas dos lázaros;quem diz a uma visita pouco familiar: Meu pai só gostava desta cadeira;
quem manda livros aos presidiários;quem se comove ao ver passar de cabeça branca aquele ou aquela, mestre ou mestra, que foi a fera do colégio;
quem escolhe na venda verdura fresca para o canário;
quem se lembra todos os dias do amigo morto;
quem jamais negligencia os ritos da amizade;
quem guarda, se lhe deram de presente, o isqueiro que não mais funciona;
quem, não tendo o hábito de beber, liga o telefone internacional no segundo uísque a fim de conversar com amigo ou amiga;
quem coleciona pedras, garrafas e galhos ressequidos;
quem passa mais de dez minutos a fazer mágicas para as crianças;
quem guarda as cartas do noivado com uma fita;
quem sabe construir uma boa fogueira;
quem entra em delicado transe diante dos velhos troncos, dos musgos e dos liquens;
quem procura decifrar no desenho da madeira o hieróglifo da existência;
quem não se acanha de achar o pôr-do-sol uma perfeição;quem se desata em sorriso à visão de uma cascata;quem leva a sério os transatlânticos que passam;
quem visita sozinho os lugares onde já foi feliz ou infeliz;
quem de repente liberta os pássaros do viveiro;
quem sente pena da pessoa amada e não sabe explicar o motivo;
quem julga adivinhar o pensamento do cavalo;todos eles são presidiários da ternura e andarão por toda a parte acorrentados, atados aos pequenos amores da armadilha terrestre.

Paulo Mendes Campos, cronista mineiro falecido em 1991 aos 69 anos de idade

Um comentário:

  1. vi esse poema num velho livro de filosofia,
    gostei muito era o eu que conheço,perdi o livro depois quando comecei acessar a internet, cliquei o buscador e ele tava lá,passou muito tempo no meu perfil do orkut, esse nome acorrentado não soa muito bem, parece que a pessoa gosta tanto do mundo que está preso não consegue sair, eu penso diferente, o ser humano que tem todas as caracteristicas da pessoa do poema, é livre e pronto , a responder o chamado do senhor, sem nenhum temor.

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