só e imóvel a velar, encardido pelo sol e pelo tempo, testemunho de prantos, lamentações e orações.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Acorrentados
                                           Paulo Mendes Campos

Quem coleciona selos para o filho do amigo;
quem acorda de madrugada e estremece no desgosto de si mesmo ao lembrar que há muitos anos feriu a quem amava;
quem chora no cinema ao ver o reencontro de pai e filho;
 quem segura sem temor uma lagartixa e lhe faz com os dedos uma carícia;
 quem se detém no caminho para ver melhor a flor silvestre;
 quem se ri das próprias rugas;
 quem decide aplicar-se ao estudo de uma língua morta depois de um fracasso sentimental;
quem procura na cidade os traços da cidade que passou;
 quem se deixa tocar pelo símbolo da porta fechada;
 quem costura roupa para os lázaros;
 quem envia bonecas às filhas dos lázaros;
 quem diz a uma visita pouco familiar: Meu pai só gostava desta cadeira;
 quem manda livros aos presidiários;
 quem se comove ao ver passar de cabeça branca aquele ou aquela, mestre ou mestra, que foi a fera do colégio;
 quem escolhe na venda verdura fresca para o canário;
 quem se lembra todos os dias do amigo morto;
quem jamais negligencia os ritos da amizade;
 quem guarda, se lhe deram de presente, o isqueiro que não mais funciona;
quem, não tendo o hábito de beber, liga o telefone internacional no segundo uísque a fim de conversar com amigo ou amiga;
 quem coleciona pedras, garrafas e galhos ressequidos;
 quem passa mais de dez minutos a fazer mágicas para as crianças;
 quem guarda as cartas do noivado com uma fita;
quem sabe construir uma boa fogueira;
quem entra em delicado transe diante dos velhos troncos, dos musgos e dos liquens;
quem procura decifrar no desenho da madeira o hieróglifo da existência;
 quem não se acanha de achar o pôr-do-sol uma perfeição;
quem se desata em sorriso à visão de uma cascata ;
 quem leva a sério os transatlânticos que passam;
quem visita sozinho os lugares onde já foi feliz ou infeliz;
 quem de repente liberta os pássaros do viveiro;
quem sente pena da pessoa amada e não sabe explicar o motivo;
 quem julga adivinhar o pensamento do cavalo;
todos eles são presidiários da ternura e andarão por toda a parte acorrentados, atados aos pequenos amores da armadilha terrestre.

.........pois sou um acorrentado, graças a Deus.

anjo só

Um comentário:

  1. Anjo, li várias vezes ..é tão bonito!
    Só um Anjo posta um texto desse...
    "Presidiários da ternura", pensei bem depois de ler e me sinto assim: "acorrentada", pois me preocupo com o próximo, com os pequenos*. Me identifiquei contigo, isso é inexplicável.
    Gosto da simplicidade; trabalho com crianças carentes aqui no Morro do Alemão e choro à noite, por saber q a maioria dorme de barriga vazia, sofrem com a violência extrema do lugar, vivem pedindo nas ruas; enfim, são carentes de tudo e "de amor também...*
    beijinhos, da Mery*
    Gosto de ti demais.
    Um fim de semana de muita Paz e alegrias.

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